Para ler e entender o conteúdo bíblico, é necessário que se tenha atenção a uma série de fatores e contextos, a fim de chegar a uma interpretação sadia. Algumas vezes o texto tem uma interpretação clara, e dispensa grande aprofundamento, como por exemplo mandamento "não matarás". No entanto, na maioria das vezes, não é tão simples assim. Ignorar e/ou ser desatento com alguns fatores pode nos levar a uma conclusão bem distante daquela pretendida pelo autor bíblico e, em última análise, pelo próprio Deus, que confiara ao autor a mensagem a ser transmitida.
Em muitas passagens é necessário atenção aos pormenores do texto para que se identifique o verdadeiro significado. Em outras, porém, a complexidade de fatores é tanta, que apenas podemos especular a respeito do acontecido, através de cruzamento de dados. É claro que isso não acontece em passagem que o Senhor tem uma mensagem para nós, mas sim em situações que aconteceram em outra cultura.
Um desses casos é o encontro do primeiro rei de Israel, Saul (que antecedeu Davi), com uma médium. A leitura ingênua do texto nos leva a conclusão simplista de que o espírito de Samuel (recém falecido sacerdote e juiz fiel ao Senhor de Israel) teria sido invocado pela feiticeira e conversado com o ainda vivo Saul.
Vamos abordar este texto, que pode ser lido em 1Samuel 28:3-19 como exemplo, para que a boa interpretação seja disseminada entre os cristãos.
Antes de abordar o episódio narrado, precisamos fazer uma pequena viagem no tempo para antes da existência dos israelitas. Através de pesquisas e estudos arqueológicos, sabemos que a tentativa de se comunicar com os mortos era comum em todo o oriente médio. Por exemplo, na Mesopotâmia, existe o registro do famoso conto sumério, o Épico de Gilgamés. Nesta história, a personagem Nergal convoca o espírito de Enkidu, para que este se erga de um buraco no solo, a fim de que ele fale com Gilgamés. Ainda na Mesopotâmia, registros históricos relatam necromantes (tanto do sexo masculino como do feminino) usando caveiras para recolher os espíritos, enquanto estes vão sendo questionados. No Egito (nação obcecada com o pós-vida), era comum a prática de escrever aos mortos.
Ainda em nossa viagem no tempo, cerca de 200/300 anos antes do ocorrido com Saul, vamos a entrada dos israelitas à terra prometida. Naquela ocasião, Deus ordenou que as práticas de necromancia (também comum entre os povos que habitavam Canaã) fossem banidas. Deus deixou claro que Ele mesmo falaria com seu povo por meio de seus profetas (Deuteronômio 18:9-12).
Voltando à época do texto, lembremos que nos primeiros dias de seu reinado, Saul havia expulsado os médiuns do país, conforme a lei de Moisés (Levítico 19:26). Saul começou aparentemente bem seu reinado, mas acabou desobedecendo o Senhor. E por causa dessa desobediência, Deus rompeu totalmente a comunicação como ele, conforme descrito no versículo 6 "e perguntou a Deus, o Senhor, o que devia fazer. Mas o Senhor não respondeu nem por sonhos, nem pelo Urim, nem através dos profetas.". Neste versículo podemos ver os três canais de comunicação, pelos quais Deus falava, e que se mantiveram mudos a Saul:
- Sonhos (Números 12:6);
- Urim e Tumim: O Urim e o Tumim ficavam ao cuidado dos sacerdotes, mas já não havia nenhum sacerdote com Saul desde a matança em Nobe (1Samuel 22:11-19). Na verdade, o verdadeiro colete sacerdotal, com o Urim e o Tumim, estavam com Abiatar, que era aliado de Davi. A respeito deste método de consulta, existem duas possíveis conclusões: a) Saul pode ter mandado fazer outro colete para seu uso; ou b) o autor pode ter usado uma declaração "convencional", que incluía as três formas usuais de revelação, a fim de ressaltar o que queria ensinar (Que Deus já havia reprovado totalmente Saul, e se afastara dele);
- Voz direta por meio dos profetas: Davi tinha um profeta (Gade, 1Samuel 22:5). Contudo Saul, depois de Samuel se afastar dele (1Samuel 15:35), nenhum profeta o servia mais;
Acompanhando toda a trama da vida de Saul, vemos que ele parece pressentir um desastre na batalha iminente. Mediante isso (o fato de Deus se calar para ele), aterrorizado e com medo da derrota e da morte, Saul recorre a uma praxe pagã que ele mesmo exterminara no início de seu reinado.
O versículo 12 diz "quando a mulher viu Samuel...". Esse é o ponto chave deste texto. Existem algumas interpretações diferentes para a passagem:
- Interpretação simplista - Deus realmente permitiu que o espírito de Samuel aparecesse a essa mulher;
- Interpretação fundamentalista/dispensacionalista - A mulher recebeu algum espírito mau e diabólico, na forma de Samuel, e este a enganou;
- Interpretação liberal/cética - Mediante uso de poderes parapsicológicos, como telepatia e/ou clarividência, a mulher foi capacitada a discernir os pensamentos de Saul (talvez até ler sua mente), e assim obter um quadro mental de Samuel;
- Interpretação crítica (procura uso de bom senso) - Uma combinação das interpretações "2" e "3", com que faria que Saul pensasse se tratar de Samuel e, por consequência, seus criados também o pensariam. Uma vez que seus criados que o acompanhavam e foram os responsáveis pela transmissão da história a toda Israel, teriam contado a história com a versão de Saul, de que Samuel lhe aparecera;
Devemos levar em consideração que o idioma em que o texto foi escrito é o hebraico. No versículo 13, quando a necromante vê Samuel, o que de fato ela declara é que está vendo um "Elohim", palavra que pode ser interpretada como "ser", "ente" ou "Deus". O que torna difícil a identificação do termo, é que esta é a única passagem em toda a bíblia que a palavra Elohim é usada para descrever um "fantasma", ou seja, não há parâmetros definidos.
- Cabe aqui um parêntese: Para alguns teólogos e arqueólogos, há aqui a indicação de que os mortos eram deificados no antigo Israel pagão. Muitas culturas ao redor de Israel tinham cerimônias em honra aos mortos na forma de culto, o que reforça a ideia, uma vez que Israel sempre deixou se influenciar pelo paganismo dos povos vizinhos. Na antiga Mesopotâmia, antes mesmo do período dos patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó), essas cerimônias foram registradas e chamadas de "ritual kispu". Isso nos dá uma ideia da longevidade e tradição desses cultos. A existência de leis mosaicas contra estas atividades são testemunhas de que práticas como estas e similares eram bem conhecidas.
Como podemos ver, é precipitado, e até mesmo desonesto da parte do teólogo/pastor abordar qualquer uma dessas interpretações como a "verdadeira". O que pode ser concluído com precisão é que a médium foi usada por Deus de alguma maneira, para deixar Saul saber que a batalha iminente traria morte, esmagaria suas esperanças de ter uma dinastia e daria fim ao seu reinado com uma derrota devastadora que deixaria a nação a mercê dos filisteus.