domingo, 16 de agosto de 2015

A Arte de Ler a Bíblia - Saul e a Médium de En-Dor


Para ler e entender o conteúdo bíblico, é necessário que se tenha atenção a uma série de fatores e contextos, a fim de chegar a uma interpretação sadia. Algumas vezes o texto tem uma interpretação clara, e dispensa grande aprofundamento, como por exemplo mandamento "não matarás". No entanto, na maioria das vezes, não é tão simples assim. Ignorar e/ou ser desatento com alguns fatores pode nos levar a uma conclusão bem distante daquela pretendida pelo autor bíblico e, em última análise, pelo próprio Deus, que confiara ao autor a mensagem a ser transmitida.

Em muitas passagens é necessário atenção aos pormenores do texto para que se identifique o verdadeiro significado. Em outras, porém, a complexidade de fatores é tanta, que apenas podemos especular a respeito do acontecido, através de cruzamento de dados. É claro que isso não acontece em passagem que o Senhor tem uma mensagem para nós, mas sim em situações que aconteceram em outra cultura.

Um desses casos é o encontro do primeiro rei de Israel, Saul (que antecedeu Davi), com uma médium. A leitura ingênua do texto nos leva a conclusão simplista de que o espírito de Samuel (recém falecido sacerdote e juiz fiel ao Senhor de Israel) teria sido invocado pela feiticeira e conversado com o ainda vivo Saul.

Vamos abordar este texto, que pode ser lido em 1Samuel 28:3-19 como exemplo, para que a boa interpretação seja disseminada entre os cristãos.


Antes de abordar o episódio narrado, precisamos fazer uma pequena viagem no tempo para antes da existência dos israelitas. Através de pesquisas e estudos arqueológicos, sabemos que a tentativa de se comunicar com os mortos era comum em todo o oriente médio. Por exemplo, na Mesopotâmia, existe o registro do famoso conto sumério, o Épico de Gilgamés. Nesta história, a personagem Nergal convoca o espírito de Enkidu, para que este se erga de um buraco no solo, a fim de que ele fale com Gilgamés. Ainda na Mesopotâmia, registros históricos relatam necromantes (tanto do sexo masculino como do feminino) usando caveiras para recolher os espíritos, enquanto estes vão sendo questionados. No Egito (nação obcecada com o pós-vida), era comum a prática de escrever aos mortos.

Ainda em nossa viagem no tempo, cerca de 200/300 anos antes do ocorrido com Saul, vamos a entrada dos israelitas à terra prometida. Naquela ocasião, Deus ordenou que as práticas de necromancia (também comum entre os povos que habitavam Canaã) fossem banidas. Deus deixou claro que Ele mesmo falaria com seu povo por meio de seus profetas (Deuteronômio 18:9-12).

Voltando à época do texto, lembremos que nos primeiros dias de seu reinado, Saul havia expulsado os médiuns do país, conforme a lei de Moisés (Levítico 19:26). Saul começou aparentemente bem seu reinado, mas acabou desobedecendo o Senhor. E por causa dessa desobediência, Deus rompeu totalmente a comunicação como ele, conforme descrito no versículo 6 "e perguntou a Deus, o Senhor, o que devia fazer. Mas o Senhor não respondeu nem por sonhos, nem pelo Urim, nem através dos profetas.". Neste versículo podemos ver os três canais de comunicação, pelos quais Deus falava, e que se mantiveram mudos a Saul:

  1. Sonhos (Números 12:6);
  2. Urim e Tumim: O Urim e o Tumim ficavam ao cuidado dos sacerdotes, mas já não havia nenhum sacerdote com Saul desde a matança em Nobe (1Samuel 22:11-19). Na verdade, o verdadeiro colete sacerdotal, com o Urim e o Tumim, estavam com Abiatar, que era aliado de Davi. A respeito deste método de consulta, existem duas possíveis conclusões: a) Saul pode ter mandado fazer outro colete para seu uso; ou b) o autor pode ter usado uma declaração "convencional", que incluía as três formas usuais de revelação, a fim de ressaltar o que queria ensinar (Que Deus já havia reprovado totalmente Saul, e se afastara dele);
  3. Voz direta por meio dos profetas: Davi tinha um profeta (Gade, 1Samuel 22:5). Contudo Saul, depois de Samuel se afastar dele (1Samuel 15:35), nenhum profeta o servia mais;


Acompanhando toda a trama da vida de Saul, vemos que ele parece pressentir um desastre na batalha iminente. Mediante isso (o fato de Deus se calar para ele), aterrorizado e com medo da derrota e da morte, Saul recorre a uma praxe pagã que ele mesmo exterminara no início de seu reinado.

O versículo 12 diz "quando a mulher viu Samuel...". Esse é o ponto chave deste texto. Existem algumas interpretações diferentes para a passagem:

  1. Interpretação simplista - Deus realmente permitiu que o espírito de Samuel aparecesse a essa mulher;
  2. Interpretação fundamentalista/dispensacionalista - A mulher recebeu algum espírito mau e diabólico, na forma de Samuel, e este a enganou;
  3. Interpretação liberal/cética - Mediante uso de poderes parapsicológicos, como telepatia e/ou clarividência, a mulher foi capacitada a discernir os pensamentos de Saul (talvez até ler sua mente), e assim obter um quadro mental de Samuel;
  4. Interpretação crítica (procura uso de bom senso) - Uma combinação das interpretações "2" e "3", com que faria que Saul pensasse se tratar de Samuel e, por consequência, seus criados também o pensariam. Uma vez que seus criados que o acompanhavam e foram os responsáveis pela transmissão da história a toda Israel, teriam contado a história com a versão de Saul, de que Samuel lhe aparecera;

Devemos levar em consideração que o idioma em que o texto foi escrito é o hebraico. No versículo 13, quando a necromante vê Samuel, o que de fato ela declara é que está vendo um "Elohim", palavra que pode ser interpretada como "ser", "ente" ou "Deus". O que torna difícil a identificação do termo, é que esta é a única passagem em toda a bíblia que a palavra Elohim é usada para descrever um "fantasma", ou seja, não há parâmetros definidos.

- Cabe aqui um parêntese: Para alguns teólogos e arqueólogos, há aqui a indicação de que os mortos eram deificados no antigo Israel pagão. Muitas culturas ao redor de Israel tinham cerimônias em honra aos mortos na forma de culto, o que reforça a ideia, uma vez que Israel sempre deixou se influenciar pelo paganismo dos povos vizinhos. Na antiga Mesopotâmia, antes mesmo do período dos patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó), essas cerimônias foram registradas e chamadas de "ritual kispu". Isso nos dá uma ideia da longevidade e tradição desses cultos. A existência de leis mosaicas contra estas atividades são testemunhas de que práticas como estas e similares eram bem conhecidas.

Como podemos ver, é precipitado, e até mesmo desonesto da parte do teólogo/pastor abordar qualquer uma dessas interpretações como a "verdadeira". O que pode ser concluído com precisão é que a médium foi usada por Deus de alguma maneira, para deixar Saul saber que a batalha iminente traria morte, esmagaria suas esperanças de ter uma dinastia e daria fim ao seu reinado com uma derrota devastadora que deixaria a nação a mercê dos filisteus.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Jesus e o Calvinismo - parte 2

Moisés Amyraut

Como vimos no texto anterior, o calvinismo não representa o pensamento do reformador, João Calvino, e sim de seu sucessor, Teodoro Beza. A ênfase na predestinação, sendo apresentada como anterior a salvação, nunca foi pregada por Calvino.

No entanto, nem todos os teólogos posteriores a Calvino seguiram o escolasticismo de Beza. Moisés Amyraut (1596-1664) empreendeu um estudo completo de As Institutas. Embora sua teologia não tenha resistido a ferocidade da necessidade de exclusividade do escolasticismo reformado, sua teologia é hoje conhecida como calvinismo de quatro pontos (amyraldismo). - O calvinismo de hoje é o calvinismo de cinco pontos (acróstico TULIP, em inglês: Total depravaty [depravação total], Uncondicional election [eleição incondicional], Limited atonement [expiação limitada], Irresistible grace [graça irresistível] e Perseverance of the saints [perseverança dos santos]).

Não é difícil de se imaginar que a questão principal da teologia de Amyraut em contraposição ao consenso da reforma girava em torno da doutrina da predestinação. Amyraut rejeitava a popular valorização da doutrina como ponto de integração do entendimento teológico. Em vez disso, à semelhança de Calvino, posicionou a doutrina da predestinação como posterior à da salvação, como forma de explicar por que alguns creem no evangelho e outros não.

Amyraut argumentou que a questão girava em torno da dicotomia entre a vontade secreta de Deus e sua vontade revelada. Se por um lado a vontade revelada de Deus é de que todos cheguem a salvação, por outro, sua vontade secreta é de que é imprescindível que alguns alcancem-na. Ele explica essa distinção através de um sistema filosófico interessante, observando que há duas maneiras de se manifestar a vontade: a) fazer conhecida essa vontade (ou desejo); b) esforçar-se para fazer que ela se concretize.

Deste modo, conclui-se que Deus tem uma "vontade-desejo", que simplesmente expressa o que ele quer, e uma "vontade-vontade", a qual determina que algo acontecerá. Portanto, Deus deseja/almeja que todos cheguem a salvação, mas em sua vontade, é indispensável que algumas pessoas recebam a fé e sejam salvas.

Me parece mais peculiar a pessoa de Deus e a existência humana que, se Amyraut não atingiu a precisão absoluta em sua conclusão a respeito da eleição, chegou muito mais próximo que a ideia de expiação limitada de Beza e dos calvinistas modernos.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Jesus e o Calvinismo

João Calvino

Nos dias de hoje, não há como falar de "calvinismo" ou "teologia reformada" sem falar em predestinação. No entanto, é preciso retornar à época das reformas protestantes e conhecer a história dentro de seu contexto, para então entender a sistemática de Calvino e a dos calvinistas.

A teologia que João Calvino desenvolveu não diferia substancialmente da de Lutero. Lutero, na verdade, influenciou consideravelmente a obra de Calvino. As ideias do alemão conquistaram significativa audiência na universidade de Paris quando Calvino ainda era estudante. Pode-se dizer que Martinho foi uma das três grandes influências sobre o jovem francês. As outras duas foram o humanismo renascentista e o estudo da patrística (particularmente Agostinho).

O principal interesse de Calvino em suas Institutas foi o conhecimento de Deus. A predestinação era um mero adendo em sua teologia, mencionado apenas no final do terceiro dos quatro volumes das Institutas. Segundo Calvino, existe o conhecimento natural de Deus e a revelação sobrenatural de Deus na palavra. Ele se estende vastamente neste tema.

Calvino afirma que todos os aspectos de nossa humanidade foram afetados pelo primeiro pecado. Portanto, o ser humano é prisioneiro do pecado e desprovido do desejo de praticar justiça. Esse pensamento o guia a uma abordagem agostiniana ao avaliar a condição humana: por causa dos efeitos devastadores do pecado, não há meio pelo qual o ser humano possa chegar a Deus. Assim sendo, Deus precisa iniciar este processo, e este foi o propósito da encarnação de Jesus. Dessa maneira, Calvino afirma a justificação somente pela fé.

Chegamos então a predestinação (ou eleição). Conforme exposto neste breve resumo, Calvino introduzia este assunto depois de expor a doutrina da salvação. A predestinação não é, portanto, um tema fundamental no sistema teológico de Calvino. Contudo, tornou-se marca registrada da teologia reformada. Calvino inclusive advertiu contra a supervalorização dessa doutrina: "Procurar outro conhecimento da predestinação que [aquele] que na palavra de Deus se expõe, de não menor insânia é que se alguém queira ou avançar por [lugar] sem caminho, ou ver na escuridão".

Com isso em mente, observe como Calvino define a predestinação: "Chamamos predestinação o eterno decreto de Deus pelo qual houve em si [por] determinado que acerca de cada homem quisesse acontecer". Calvino é igualmente claro em dizer que Deu não decidiu o destino eterno de cada ser humano baseado no pré-conhecimento de como este iria responder à sua oferta da graça.

Teodoro Beza

É de suma importância entender que a metodologia de Calvino era humanista indutiva, ao contrário do método aristotélico dedutivo, aplicado por Teodoro Beza, seu sucessor; e pelos calvinistas desde então.

Beza retrocedeu ao método que caracterizou o escolasticismo medieval. Sua teologia não diferia muito em conteúdo  da teologia de Calvino, mas a sensibilidade e o frescor da obra de Calvino se perderam, e estão perdidos desde então.

Agora a teologia reformada se concentrava em estender o conhecimento teológico até os mínimos detalhes, e o relacionamento íntimo entre a teologia e a vida foi de novo obscurecido, assemelhando-se aos tempos passados, em que teólogos reuniam-se para estudar se anjos tinham ou não necessidades fisiológicas. Apenas as "necessidades fisiológicas" dos anjos foram substituídas pela predestinação.

O escolasticismo caracteriza-se por: forma dedutiva de raciocínio, uso de premissas e interesse por pensamentos abstratos. Tudo com que Calvino não queria lidar. Com isso em mente, podemos entender que Calvino, pelo que sentiu em sua conversão e estudou ao longo de sua vida, chegou a conclusão de que, de alguma forma que não era clara para ele, Deus escolhia pessoas. Já Beza e os Calvinistas, partiam (e partem até hoje) do pressuposto que Deus escolhe algumas pessoas, e a partir daí buscam nas Escrituras textos que justifiquem seu pensamento dedutivo. É uma diferença sensível.

Essa nova mentalidade representou uma divergência profunda da fé orientada pelo humanismo de Calvino, Lutero e a maioria dos primeiros reformadores. Beza mudou o debate a cerca da doutrina da salvação para a predestinação. Essa mudança fez de Deus uma divindade caprichosa e distante, em vez do pai amoroso que Calvino descreveu. Daí em diante, a teologia reformada passou a enfatizar a soberania divina absoluta e as doutrinas relacionadas.

Como consequência, Beza desenvolveu uma proposição teológica conhecida como supralapsarianismo (do latim supra lapsum, "acima da queda" - portanto, "antes da queda). Este é o conceito de que o decreto divino que elegeu alguns e condenou outros antecede a permissão para a queda da humanidade. Surgiu uma outra perspectiva, o infralapsarianismo, que entende o decreto de Deus a respeito da eleição como sequência lógica posterior ao decreto da queda. Ainda surgiu o sublapsarianismo. Embora essas diferenças sutis pareçam triviais e sem propósito, é um exemplo da busca incansável por precisão da parte do escolasticismo. O fato relevante aqui é que Deus teria decretado a existência de alguns eleitos e outros não, a queda e a permissão para salvação dos eleitos.

Por fim, Beza desenvolveu formalmente a doutrina da expiação limitada. Essa doutrina afirma que Cristo alcançou na cruz o que era tencionado apenas para redimir os eleitos. A proposição pode ser apresentada de modo oposto: Cristo não resgatou aqueles a quem Deus não elegeu.

Veja o problema da doutrina da eleição: Se Deus decretou eleger somente alguns, e não outros, segue-se que o decreto que disponibilizava a redenção por meio de Cristo era apenas para os eleitos. Traduzindo em miúdos: Jesus morreu na cruz apenas para alguns poucos escolhidos! Concluir algo diferente seria o mesmo que afirmar que Deus filho estava trabalhando com propósitos contrários aos de Deus pai. Jacó Armínio chegou a perturbadora conclusão que, segundo o calvinismo de Beza, Deus era o autor do pecado!

Sabe-se muito pouco a respeito da conversão de Calvino. Ele relatou no prefácio de seu comentário sobre salmos sua "conversão súbita", durante a qual se sentiu escolhido por Deus e chamado para algo específico. Todos os cristãos têm relatos de um (ou mais) encontro(s) com Cristo. O que não é correto é afirmar que todas as experiências são iguais. Eu, por exemplo, meditei muito a respeito das palavras de Deus e dos ocorridos em minha vida, para então chegar a conclusão que Deus de fato existe e que Jesus morreu por mim. Não desprezo, no entanto, a experiência de Calvino, que parece ter sido diametralmente oposta a minha.

Há muitos lapsos no calvinismo, mas não se faz necessário explorá-los. Basta olhar para o mais conhecido versículo bíblico "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito para todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna" para perceber que o calvinismo e sua empáfia são um paradoxo.

Jesus morreu por todos, e não só para os calvinistas. Alguns (e isso inclui os calvinistas) reconhecem esse sacrifício, e então ganham o direito de passar a eternidade ao lado do Pai.